O Estado capitalista sem obrigações sociais é um monstro. "O desafio é domá-lo", diz Merkel
ENTREVISTA | WOLFGANG MERKEL
O problema é que a democracia precisa do capitalismo, mas o capitalismo não precisa da democracia”, diz Wolfgang Merkel, 65 anos, professor de Ciências Políticas e diretor do Centro de Ciências Sociais de Berlim, que há tempos se dedica a analisar a convivência entre o sistema econômico e o político. Se a experiência comunista não deu certo, observa, o neoliberalismo também “produz monstros”, levando o mundo a uma crise da qual ainda não se recuperou.
O Estado tem de estar presente, inclusive para garantir a inserção das faixas mais pobres na política, hoje atraídas pelo populismo de direita. Não pode haver “democracias de dois terços ou de 50%” da população, alerta o cientista político, que esteve recentemente no Brasil para participar de debates. A Fundação Friedrich Ebert (FES) – entidade de pesquisa e estudos ligada à movimentos da social-democracia da alemã, promoveu um encontro dele com o ex-prefeito Fernando Haddad.
A questão é saber qual modelo de democracia pode, de alguma maneira, controlar o chamado mercado, que parece atuar livremente pelo mundo e alimenta a desigualdade social. “Se desigualdades econômicas demasiadamente grandes prevalecem, como no Brasil ou na América Latina, elas se transformam em desigualdades políticas. E uma democracia não pode aceitar isso”, afirma o professor, para quem o “auge” do neoliberalismo já passou, mas não se vislumbra um retorno ao clássico Estado de bem-estar social.
Nem a crise global de 2007/2008 levou os governos a tentar restabelecer algum tipo de regulação dos mercados. “Há atores poderosos com poder de vetar o retorno à regulação.”
Ele manifesta preocupação com a situação atual do Brasil, que considera “uma pequena catástrofe para a democracia”. E o grande problema da região, a desigualdade, pode aumentar com a desregulação das relações de trabalho e mudanças na Previdência, como pretende o governo. “A desigualdade e a fragilidade dos setores mais pobres da sociedade crescerão ainda mais. Isto levará a um funcionamento pior da democracia e pode levar também a turbulências.” Para ele, é preciso buscar consensos e afastar o clima de polarização hoje predominante no país.
Ex-consultor de governos na Alemanha, Espanha e Inglaterra, o professor, ao refletir sobre o descrédito das pessoas em relação à política, também chama a atenção para o papel da mídia. “A política é frequentemente é reduzida a escândalos. Não se discutem políticas públicas, projetos. Só aparecem casos de corrupção. E corrupção é algo que segundo a mídia só aparece na política, embora ela esteja presente na sociedade, na economia.” Assim, observa Merkel, os meios de comunicação formulam a agenda política.
O senhor questiona em seus escritos se a democracia é compatível com o sistema capitalista. É possível se alcançar um modelo que harmonize um regime político democrático com esse sistema econômico?
Em primeiro lugar, ambos os termos devem ser pensados no plural. Temos várias formas de democracia e de capitalismo. Poderíamos falar de uma democracia minimalista, aquela em que as eleições são os únicos elementos suficientes e indispensáveis da democracia. Existe também um conceito maximalista que considera não só as eleições, mas também o Estado de direito, direitos civis, direitos políticos. Outro conceito leva também em conta os resultados da tomada de decisões políticas. Penso que é aconselhável optar por um conceito mediano, que garante eleições livres, é justo, mas ofereça as garantias do Estado de direito para os indivíduos. Isso sem falar ainda na democracia direta, representativa e deliberativa.
Quando damos uma olhada no capitalismo, temos, pelo menos desde o ano 2000, uma discussão intensa sobre as assim variedades de capitalismo. Há a forma clássica, que chamamos de forma neoliberal anglossaxônica, em que os mercados são geralmente liberados das regulações políticas e sociais. Há o modelo do pós-guerra vigente na social-democracia da Alemanha, da França, da Holanda, com economias de mercado, mas coordenadas – coordinated market economies. Nesta variante, o Estado tem um papel de impor obrigações sociais no capitalismo. O mercado de trabalho é regulamentado. Mas não exige o sistema de propriedade estatal. É um socialismo funcional, como os suecos o denominaram.
Além disso, temos outras formas misturadas ou “bastardas” de capitalismo. Um exemplo é o da China, onde o capitalismo coexiste com um sistema autoritário. O Estado tem papel importante, mas as relações de trabalho são organizadas como no século 18 na Inglaterra. Convive-se com a ausência de direitos para os trabalhadores e num mercado mais desregulado do que nos Estados Unidos. Na América Latina e no Brasil, existe uma discussão sobre um “capitalismo hierárquico”, em que o Estado desempenha papel importante, mas o controle social não funciona de fato e se mantém o capitalismo suscetível a gerar desigualdades.
O foco da sua pergunta é em que tipo de democracia existe um mecanismo de controle do mercado. Essa foi uma forma que prevaleceu nos anos 50, 60 e 70, na Europa Ocidental. Essa forma é mais adequada em relação ao princípio da igualdade. Porque se desigualdades econômicas demasiadamente grandes prevalecem, como no Brasil ou na América Latina, elas se transformam em desigualdades políticas. E uma democracia não pode aceitar isto.
A questão é se o capitalismo seria compatível com a democracia mesmo sendo ele um modelo causador de desigualdade, social e econômica. Esses modelos de bem-estar social estabelecidos no pós-guerra, sobretudo na Europa, movidos por uma forte presença do Estado, desde o final dos anos 80 vem sendo confrontado pelo neoliberalismo. Essa a tese, de redução do Estado, está prevalecendo, globalmente?
Historicamente, nunca houve uma democracia que se sustentasse fora do capitalismo. O “grande projeto comunista” da democracia com uma nacionalização dos meios de produção fracassou com o império soviético, e o comunismo asiático também fracassou. O problema é que a democracia precisa do capitalismo, mas o capitalismo não precisa da democracia. O capitalismo existe nas piores ditaduras. Coexistia com o nacional-socialismo. Coexiste com a quase-ditadura na China. A democracia precisa do capitalismo pelo menos por uma razão. Uma economia separada do Estado produz um contra-poder diante do Estado, que, de outro modo, pode tornar-se rapidamente um Leviatã. Por outro lado, se o Estado tem o controle absoluto sobre os mundos político e econômico, não existe propriamente um Estado, mas um monstro.
Além disso – e isso é uma tendência dominante –, o mecanismo do mercado é o sistema mais eficiente para alocação de mão de obra, de meios de produção e para o desenvolvimento de tecnologias. Ele é altamente eficiente. Mas esse capitalismo tem de ser balizado por obrigações sociais. Não devemos achar, incondicionalmente, que temos de desenvolver um sistema completamente alternativo para a economia. O que devemos fazer é domar esse capitalismo altamente eficiente, moderá-lo, domesticá-lo e integrá-lo numa regulamentação político-social. A revolução neoliberal implantada desde Thatcher e Reagan levou a um Estado mínimo, small government, em que o Estado abdica de suas obrigações. Isso também produz monstros, nos conduziu à crise econômico-financeira de 2007 e dos anos seguintes.
A financeirização da economia, ao proporcionar a formação de riquezas não produtivas, não inviabiliza a democracia, uma vez que a acumulação e a concentração de riquezas inibem os regimes de bem-estar social, ou seja, as obrigações sociais deste capitalismo, inibindo a prática de políticas públicas que levem à redução das desigualdades?
Por que não aconteceu uma volta da regulação depois da crise financeira de 2007? Sabemos pelos estudos econômicos e políticos que é muito mais fácil desregular do que regular de novo. Isso é um problema da ação coletiva que a União Europeia tem. A UE foi muito forte na “regulação negativa”, ou seja, na desregulação dos mercados, na criação de um sistema de concorrência. Isso levou a um mercado europeu unificado. Mas com a afiliação de 28 países como membros efetivos, é muito difícil ter condições para produzir uma integração positiva, como, por exemplo, em termos de regulações sociais, de um programa europeu de educação ou de normas mínimas no campo social.
Veja os casos da Inglaterra e da França. A Inglaterra possui um capitalismo de mercado anglossaxônico e a França quer uma regulação estatal maior. Fica difícil encontrar um compromisso regulatório. No nível global, encontramos não só os 28 países da UE, mas outros atores da mesma dimensão, como Estados Unidos, China, Rússia, Índia ou Brasil. São interesses distintos.
Mas regular não chega a ser uma revolução e nem sequer uma ruptura...
Os Estados Unidos e também a City em Londres, a Stock Exchange, (a Bolsa londrina), não têm nenhum interesse em voltar ao tempo das regulações. E sem a participação dos Estados Unidos isso não funciona. Também não funciona na União Europeia. Eu falo de maneira técnica: este é um problema para a ação coletiva. Há atores poderosos com poder de vetar o retorno à regulação. Penso que o auge do neoliberalismo já passou, mas não visualizo uma volta clássica ao Estado de bem-estar social no sentido keynesiano, como nos anos 50 e 60. Também não visualizo um país que pudesse liderar tal tentativa. Ainda se pode pensar algum modelo mais parecido com aquele na França. Mas a França se tornou, dentro da União Europeia, uma economia fraca e pouco assertiva diante da hegemonia alemã. O pensamento econômico da austeridade da Alemanha e o neoliberalismo do Reino Unido se aliam na UE. O Banco Central Europeu, sob Mario Draghi (economista italiano, na presidência do BCE desde 2011), quebrou um pouco este eixo alemão-britânico – ao injetar dinheiro nas economias do sul da Europa –, mas não a ponto de obter uma forte transformação. E com Donald Trump na Casa Branca, isto não é provável.
Durante a eleição francesa, Marine Le Pen disse que a França iria ser governada por uma mulher – ou ela ou Angela Merkel – apontando para uma ingerência do conservadorismo econômico alemão nas economias europeias e ironizando uma suposta subordinação de seu adversário, Emmanuel Macron. Essa ingerência alemã estaria inviabilizando o surgimento de alternativas aos modelos de austeridade?
Estou certo que a senhora Le Pen ter chegado ao segundo turno é um fato grave em si. Isso já diz muito sobre os desafios da democracia na Europa Ocidental, mas também da Oriental. Marine Le Pen e os populistas de direita não têm um programa econômico razoável. Eles querem retirar-se da União Europeia. Estou certo de que isto seria um desastre para a França. Por outro lado, Angela Merkel usa a União Europeia de maneira demasiado radical para impor os interesses alemães. Nem o populismo conservador, nem a austeridade alemã me parecem ser boas para Europa. Mesmo assim, Merkel é vista no mundo como quem assegura a unidade da União Europeia, porque não há outros líderes fortes. Para resumir: a economia da França é demasiado fraca para uma União Europeia forte, e a economia da Alemanha é demasiadamente forte para ela.
A desregulamentação dos mercados acabou ocorrendo mesmo em governos que se esperava de esquerda, ou de centro-esquerda. Isso acorreu por uma fragilidade dessas forças políticas, ante as ditas neoliberais, ou por adesão mesmo? O ex-presidente José Mujica, do Uruguai, disse que a social-democracia europeia, de tão racional e pragmática, deixou de ser esquerda.
É certo que foi uma fraqueza da esquerda fazer uma política menos radical, e também neoliberal. Isso também aconteceu na América Latina. A social-democracia não é um partido clássico de esquerda. É um partido de centro-esquerda. Se fosse um partido clássico da esquerda não atingiria 30% ou 40 % dos votos. Um partido clássico de esquerda ganha até 8% ou 10%. Esse é o seu potencial de voto. A social-democracia aceitou o capitalismo, e queria domá-lo através de um Estado de bem-estar social. Mas retrospectivamente eu penso que os social-democratas na Europa cometeram um erro, ao capitular diante da tese de que este modelo não é mais adequado em tempo de globalização. A terceira via de Tony Blair (primeiro-ministro britânico de 1997 a 2007) e de meu colega Anthony Giddens (sociólogo britânico pioneiro na teoria da terceira via), por exemplo, acreditava que uma nova social-democracia poderia surgir.
O erro foi terem subestimado o papel do Estado. Eles não queriam mais um Estado forte, de intervenção. Superestimaram o papel da sociedade civil. A sociedade deveria se autorregular. Isso, na minha opinião, é ingênuo. Também subestimaram a intensidade com que a globalização produz desigualdade. Esses erros afetaram não só a social-democracia, mas também todos os grandes partidos na Europa, que perdem forças.
O senhor visita o Brasil em um momento em que o governo se empenha para promover reformas de cunho neoliberal na legislação trabalhista e previdenciária. Qual o impacto dessa guinada política brasileira para o mundo, após o que a atual oposição classifica como golpe?
Acho a atual situação no Brasil uma pequena catástrofe para a democracia. Porque depois da transição na América Latina a partir dos anos 1980, nós vimos com entusiasmo a democracia com que o continente voltou a se conectar. A democracia teve grandes sucessos na América Latina. Mas houve lacunas graves. A principal é a grande desigualdade. A América Latina é a região com a maior desigualdade do mundo. E se as relações de trabalho forem desreguladas, se houver uma reforma da Previdência no Brasil, a desigualdade e a fragilidade dos setores mais pobres da sociedade crescerão ainda mais. Isto levará a um funcionamento pior da democracia e pode levar também a turbulências. E quando há turbulências na América Latina, sempre há o risco de os militares atuarem como árbitros. O que se está se passando no Brasil é um problema muito mais grave do que o fracasso do chavismo na Venezuela.
Os governos petistas tiveram como marca importante uma política externa chamada de “ativa e altiva”. Não tinha conduta hostil à hegemonia norte-americana e europeia, mas apostava em uma relação mais envolvente com outras nações consideradas emergentes, como os Brics. Essa política projetou o ex-presidente Lula como liderança mundial e referência nessa busca por combinar a funcionamento do capitalismo com modelos efetivamente mais democráticos, social e economicamente. A forma como as forças de mercado e oligarquias políticas hoje tentam inviabilizar Lula não é uma demonstração de que o capitalismo não tolera a democracia?
Tenho grandes simpatias e admiro o governo de Lula no Brasil. O Brasil é um país importante, mas não se deve superestimar essa importância. O carisma de Lula foi principalmente importante para América Latina. Para a OCDE, não. E de novo: a ideia de formar um novo centro de poder fora dos Estados Unidos e da OCDE, com Brasil, Rússia, Índia, China tem por base uma aliança altamente problemática. Não se pode crer que China e Rússia possam formar um contra-centro homogêneo diante dos Estados Unidos e da OCDE. Também neste contexto deve-se considerar que a China tem peso demasiadamente alto. O Brasil foi, de certa maneira, o ator mais fraco, mesmo que politicamente fosse o mais aceito, porque Lula foi o presidente de uma democracia, porque ele começou a mudar o país de maneira não autoritária. Mas se houver uma divisão, o Brics, como aliança, vai morrer. A China vai impor seus interesses.
O Brasil foi respeitado no mundo ocidental e também em outras partes do mundo, porque houve um presidente como Lula. Então se respeitou a tentativa de integrar na democracia que se formou com a transição um Estado de bem-estar social. Redistribuição! Mas o poder das grandes oligarquias financeiras e corporações familiares não foi quebrado. Penso que Lula e o PT negligenciaram a formação de uma aliança mais ampla e estável.
Qual a sua opinião sobre essa mudança de rota dos Estados Unidos na geopolítica global, dada a imprevisibilidade do comando de Donald Trump naquele país?
Não sabemos certamente para onde vão os Estados Unidos com Trump à frente. Deveríamos dividir a análise da política interna da externa. Na política interna, Trump até agora fracassou em grande parte, com as suas tentativas, seus decretos, barrados no Legislativo ou no Judiciário. Isso abre uma perspectiva de esperança. Mostra, que as instituições democráticas ainda são fortes. São enraizados de tal modo que um presidente não pode impor facilmente seus interesses por meio de decretos.
Mas há ainda outros fatos na política interna, um fenômeno que no fundo também ocorre na Europa Ocidental e na Oriental, e também na América Latina, mas numa versão diferente. Trata-se da emergência, ou do retorno do populismo. E nos Estados Unidos, na Europa Ocidental e Oriental ele é um populismo excludente. Mas os populistas também são contra os desenvolvimentos democráticos que tivemos nos últimos 30 anos, como os grandes avanços na questão de gênero. O populismo da direita significa sempre o risco de ataques direitos individuais e direitos de grupos sociais.
A política econômica é diferente. O que Trump promete é o mercantilismo, um afastamento do multilateralismo. Ele está em favor de um forte Estado de regulação. Mas nesse ponto eu penso que ele não vai impor muitos dos seus projetos porque muitas das grandes empresas multinacionais, especialmente as do Vale do Silício, querem uma política diferente. De Google a Facebook e outras grandes empresas da internet, e também outras empresas da exportação. Trump provavelmente não vai poder governar independente desses interesses.
Os modelos de bem-estar social que se expandiram na Europa no século 20 se estabeleceram num momento em que o mundo capitalista e as forças de mercado temiam o avanço do comunismo, capitaneado pela antiga União Soviética. Com a derrocada desses regimes, o mercado passou a se sentir mais à vontade, como se não precisasse mais negociar com a democracia nem se incomodar com o bem-estar social. Esse triunfalismo do capitalismo consegue hoje com menos esforço deter o surgimento de modelos alternativos, com mais democracia?
Tenho grandes simpatias pela tese por trás desta pergunta. Primeiramente, não considero o projeto soviético como socialista. Mas essa alternativa teve na Europa Ocidental, especialmente na Alemanha, um grande papel. Por um lado, um modelo de uma sociedade socialista foi testado. A Alemanha Oriental talvez tenha sido um dos regimes comunistas mais bem-sucedidos. Isso levou de certa forma a uma concorrência entre os dois grandes partidos pelo Estado social. O Estado de bem-estar social na Alemanha não foi implementado pela social-democracia, mas pela democracia cristã que governou nos anos 50 e 60. Eles lançaram grandes reformas sociais, e a social-democracia deu continuidade. Essa competição entre os grandes partidos populares, também nos países da Europa Ocidental, foi movida pela alternativa no Leste Europeu, mas também por partidos comunistas relativamente fortes, como na França e na Itália. Isso seguramente teve um papel no processo de construção do bem-estar social. O colapso do império soviético em 1989 realmente liberou o Ocidente dessa alternativa. O Estado de bem-estar social começou a ser desmontado pelas bordas. Não foi radicalmente desmontado. Mas não foi expandido. Seus núcleos – previdência, saúde, seguridade, direitos trabalhistas – mais ou menos continuam.
O que foi mudado é o sistema de impostos em favor dos ricos, em favor das empresas, o que levou a uma forma diferente do capitalismo. A desigualdade vai crescer. Temos uma instituição na Europa que se chama Banco Central Europeu. Os alemães não gostam muito. É um raro contraponto econômico à Alemanha. O presidente do BCE, Mario Draghi, chegou a prever uma catástrofe na crise do Euro, em parte como forma de contestar as exigências alemãs. Draghi produziu de certa forma um tipo de keynesianismo, quando o BCE comprou títulos de dívida dos países da Europa do Sul e bombearam dinheiro nas economias. Mas há um paradoxo. Embora isso tenha sido positivo para a economia, para a teoria de democracia é um problema. Quem deu esses poderes para Mario Draghi? Não é uma instituição realmente democrática. Pois temos essa ambivalência.
Há alguns anos, o senhor afirmou que existia um fantasma no mundo democrático, que é o fantasma da crise do capitalismo. O que o senhor diria aos governantes de hoje sobre como lidar com esse fantasma?
Temos falado demasiadas vezes e por demasiado tempo sobre a crise do capitalismo. É uma herança marxista que ainda carregamos em nossas teorias. Quando você olha como o capitalismo se desenvolveu desde o fim dos anos 80, não temos uma crise, mas um triunfo máximo do capitalismo. Minha tese é que o grande problema das democracias do Terceiro Mundo não é a crise do capitalismo, mas o triunfo do capitalismo. Os mercados dominando a política. Segundo a chanceler alemã, Angela Merkel, a democracia deve estar de acordo com as condições do mercado, e não os mercados deveriam de acordo com a democracia. Nas palavras de Angela Merkel, o mercado é o soberano, não o povo. Então, se existe crise, ela é financeira, e não do capitalismo. Estamos confrontados com um triunfo do capitalismo. Por causa disso acho que temos que pensar em como este capitalismo pode ser domado, para que decisões da sociedade novamente voltem a ter importantes.
Então, o desencanto da sociedade acaba sendo favorável ao controle do Estado pelos mercados.
O problema é que quem é mais prejudicado no atual modelo, a camada mais pobre, o um terço mais pobre, não participa politicamente. Nem vai para eleições. Não se filia aos partidos. Não se encontra nas ONGs. De certa maneira não existem na política. E as elites políticas não os leva em consideração por isso. Isso possivelmente mudará com o populismo de direita, que está atraindo este um terço de baixo. Daí essa transição do populismo neoliberal da direita a um populismo da direita social na Europa. Esse populismo é um perigo especial porque em parte tenta se dirigir a esses setores baixos da sociedade.
A restauração do Estado democrático passa por reincluir esse terço de baixo na política por meios democráticos. Não podemos nos tornar democracias de dois terços ou de 50%, onde a classe média ou oligarquias determinam a política. Não devemos deixar o terço baixo para os populistas da direita. A esquerda confiou demais que o lindo novo mundo da sociedade civil organizada fosse protagonizar mudanças. Muitas coisas da sociedade civil são importantes. Mas é muito placebo. Uma fatia importante da sociedade não faz parte do jogo dos poderosos que determinam a política.
Contrariando Angela Merkel, o ex-presidente Lula sempre afirmou que a economia tem de se submeter à política. Entretanto, o Brasil vive um ambiente de desconstrução da política por parte dos meios de comunicação. Os políticos seriam todos ladrões, e não representam a sociedade. No Congresso existe uma não representação, as bancadas empresariais e ruralista são muito maiores do que as de trabalhadores e organizações sociais. É uma pirâmide invertida em relação à sociedade brasileira. Essa forma como a política está estabelecida não acaba tornando fácil desestimular as pessoas a participar?
Aí não é um descrédito que envolve só a política, mas a forma como a mídia representa a política. A mídia vende um produto. É o caso com a televisão e com a imprensa escrita. Vou falar depois sobre a internet. Neste ponto a política frequentemente é reduzida a escândalos. Não se discutem políticas públicas, projetos. Só aparecem casos de corrupção. E corrupção é algo que segundo a mídia só aparece na política, embora ela esteja presente na sociedade, na economia. Pois a mídia tem um papel especialmente importante quando assume papel político como na Inglaterra, como nos Estados Unidos ou como no Brasil. Embora seja um ator pouco legitimado, formula a agenda política. Então, a mídia não é tudo, mas tem um papel forte.
E onde entra a internet?
Pensávamos no início dos anos 90 que a internet mudaria isso. Hoje, duas décadas depois, vemos que a internet não muda. As pessoas que participam off-line na política também participem on-line. E quem não participe no mundo real, também não participa no mundo virtual. Essas pessoas usam o computador para fazer compras, se divertir ou – o que é mais grave – para se unir em torno de uma tendência ou onda, e fazer-lhe eco. Teorias de conspiração, discursos de ódio e intolerância aparecem fortemente neste contexto. Sem falar na indústria de notícias falsas (fake news), e os social bots que as multiplicam automaticamente. Superestimamos os efeitos positivos da internet para a democracia e subestimamos os efeitos negativos.
Então construiu-se algo como um cinismo político. Na União Europeia, só 18% da população confia nos partidos políticos. É mais ou menos no mesmo nível de confiança nos vendedores de carros usados. Aliás essas pesquisas não refletem toda a verdade. Teríamos de perguntar: “O que fazem as outras 80% que não confiam nos partidos, mas apesar disso votam?” Se a pergunta for: “Você confia no partido em que você votou?”, os números de confiança serão mais altos. Então você percebe que as pesquisas de opinião também podem influenciar a política. Nossa tarefa é de questioná-las também.
A democracia mais participativa não poderia remediar o descrédito na democracia representativa?
Pensávamos que formas de convenção alternativas poderiam complementar a democracia representativa, e até substituí-la. Fóruns como o orçamento participativo que vem de Porto Alegre, ou as assembleias comunitárias, ou os referendos. O problema com estas formas de participação alternativa em quase todo mundo é que eles são mais socialmente seletivas. Exige-se um grau de conhecimento e consciência alto para participar dessas formas deliberativas da democracia. Na teoria parece tudo bem, mas não devemos perder de vista aquela realidade em que não se pode se contentar com formas de participação que sejam interessantes para os setores organizados da sociedade, mas que não levem em conta aquela camada mais baixa, desorganizada, desinteressada ou excluída das decisões. Temos que ter uma discussão mais séria, e não vejo isto acontecendo. Não significa que temos de eliminar formas alternativas de participação, mas reconhecer que a política e o poder têm de chegar em outros lugares.
Como está a situação política na Alemanha, e para onde caminha eleitoralmente o país?
Eu diria que a situação neste momento é de equilíbrio na disputa. Nenhum partido tem chance de ganhar maioria nas eleições gerais de setembro. Tanto a União Democrata-Cristã (CDU), com Angela Merkel, como o Partido Social Democrata (SDP), com Martin Schulz, precisam de parceiros para formar coalização. Provalmente SPD, A Esquerda (Die Linke) e os Verdes, juntos, alcançassem uma maioria escassa. Mas o partido Verde, culturalmente progressista, se tornou bastante conservador nas áreas da política fiscal, econômica e social. Aliança com Die Linke também não é fácil, pois este pois sua vez são fortemente progressistas na política econômica. Os social-democratas sentariam bem no centro e teriam estrategicamente uma boa posição. Mas se Angela Merkel conseguir convencer que existe uma ameaça de coalização esquerdista, tende a atrair os indecisos.
A CDU também vai precisar de uma coalizão com um ou dois parceiros. E com o partido populista AFD nenhum partido na Alemanha vai se coligar. Existe algo como um acordo entre as forças mais democráticas de não coligar com este partido. Então ela, Merkel, precisa de outros parceiros. A situação é tão frágil que pode acontecer mesmo uma grande coalizão entre SPD e CDU. Não desejo isto. Acho isto muito ruim para a social-democracia. Mas, infelizmente, se tivesse de apostar US$ 1.000, apostaria que é o que vai acontecer.
Por falar em aposta, gostaria de desafiar o senhor a arriscar dois prognósticos sobre 2018: 1) a Alemanha vai ganhar a Copa? 2) O que imagina para as eleições no Brasil, com Lula hoje favorito, mas com a extrema-direita crescendo?
Primeiro vou falar sobre o esporte. O tempo dos 7 a 1 acabou. A Alemanha não vai jogar tão bem, não deve chegar lá de novo, mas também não sei quem vai. Torço para que chegue um país pequeno, como Holanda ou Portugal.
Já a chance de o Lula vencer de novo para presidente depende que não seja impedido pela Justiça. Isso ainda não foi resolvido. Se houver a consolidação de Lula, para um lado, e desta facção populista de direita que está surgindo, por outro lado, significaria uma catástrofe, porque resultaria em uma polarização perigosa para o país. A questão também seria: os conservadores que hoje estão no espectro da centro-direita poderiam chegar a um acordo em torno de um candidato de extrema-direita? Imagino que uma parte dos conservadores não teria simpatia por um candidato que na votação do impeachment de Dilma Rousseff exaltou um torturador e o regime ditatorial. Numa cultura política civilizada, um político assim seria inviabilizado. No Brasil não é. Mostra que a polarização no pais já está fortemente avançada. Se Lula for candidato, terá de estender a mão ao centro e funcionar como mediador entre o centro e a centro-direita que se recusa ao populismo de direita. Terá de ter discurso que atraia a classe média. Não são tempos para uma nova polarização, mas de busca de consensos. Pode ser que alguns na esquerda não gostem disso. Mas ainda é uma melhor opção do que uma campanha polarizada, e no fim um presidente da direita populista. Nesse caso, porém, não vou apostar US$ 1.000 no que vai acontecer.
Fonte: Rede Brasil Atual (Por Paulo Donizetti de Souza e Vitor Nuzzi)
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